quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O que está em jogo na Saúde


Ligia Bahia*

Saúde pública é uma expressão ambivalente. Refere-se à noção de medidas de saúde da população e ao conjunto de instituições que atuam para prevenir, reduzir, controlar e eliminar riscos, ofertando cuidados e ações assistenciais.   Sem a intervenção local, nacional e internacional da saúde pública nos dois últimos séculos, sem o financiamento crescente aos gastos setoriais baseados em impostos que, entre outras atividades, mantêm conectados sistemas de registro e estatísticas populacionais com a atenção aos indivíduos não seria possível agir sobre o que se aprende.  Portanto, a saúde pública e suas inovadoras estruturas burocráticas, que unem a compreensão dos problemas de saúde às ações para reduzi-los, são movidas por atos de decisão política. 
O surgimento da saúde pública como área cientifica foi marcado por intensas discussões teóricas e pragmáticas. A principal contradição refere-se à origem natural ou social das doenças. As ideias de que os problemas de saúde situam-se exclusivamente no reino da natureza biológica ou orbitam apenas na esfera das relações entre renda e consumo não são inéditas no mundo e no Brasil. Seus adeptos tendem a se contrapor aos sistemas públicos de saúde.
Nos anos 20, os sanitaristas brasileiros obtiveram sucesso ao afirmarem a saúde com variável determinante para o desenvolvimento. Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato curado de sua doença, parou de beber, passou a andar calçado e se transformou num trabalhador exemplar.  O autor engajado nas campanhas de saneamento de então, declarou: "só a alta crescente do índice de saúde coletiva trará a solução do problema econômico”.  Posteriormente, a saúde pública foi escanteada.  Durante a era do “crescer para depois distribuir o bolo” o vertiginoso crescimento de um sistema essencialmente privado de medicina previdenciária financiado com recursos públicos desidratou o Ministério da Saúde. Só nos anos 80, o acréscimo do S de social ao então BNDE anunciou o esgotamento do padrão de crescimento econômico autoritário e desigual. Logo depois, o elevado teor de saúde pública no capitulo da ordem social da Constituição de 1988, levou o Brasil ao pódio dos países dotados de sistemas universais.
Contudo, vários dos preceitos constitucionais referentes à saúde foram proscritos na prática. Sucessivos governantes, ansiosos por conduzir o Brasil ao primeiro mundo, juraram obedecer às leis do país e asfixiaram a saúde pública.  
Apesar do subfinanciamento crônico do SUS se deu nó em pingo d’água. Considerando que vivemos em um país que desde 1989 não aporta os recursos previstos ao SUS e desde 2004 investe mais recursos com o pagamento do pessoal do Ministério da Fazenda do que com o da pasta da saúde, falta muito que fazer. No entanto, os resultados dos esforços de muita gente comprometida com a saúde pública são invejados pelo mundo afora. Avançamos no controle de doenças e rompemos com estigmas que só pioravam a saúde. O SUS não é um fracasso apesar da insistente retórica que associa o público com o que não dá certo, com má qualidade.  
É impossível organizar um sistema de saúde dotado de padrões razoáveis de acesso e qualidade com investimentos de 3,5% do PIB, ou com um gasto per capita anual de menos de R$ 500,00.  Suas insuficiências, filas, restrições do acesso, heterogeneidade da qualidade dos serviços públicos, despersonalização do atendimento servem de argumento para as alegadas indisposições das classes médias com o SUS e justificam a intensificação de vazamentos fiscais para financiar a privatização. Assim, as restrições orçamentárias impostas ao SUS transformam-se em subsídios para dinamizar o mercado de planos privados. Temos duas políticas estatais de saúde que concorrem entre si.   Qual delas será expandida para atender a nova classe média emergente? Para que 90 milhões de pessoas acessem planos privados de saúde os subsídios indiretos são insuficientes. Abrir uma rota falsa de fuga do SUS não atende os pleitos de empresas ávidas por comercializar contratos que caibam no bolso desses potenciais clientes. São Paulo saiu na frente e aprovou uma legislação estadual que admite a oferta de um pedaço das unidades públicas hospitalares (25% dos leitos) para o atendimento de clientes de planos privados na rede SUS, em acomodações diferenciadas. Se a alternativa for a ampliação do SUS, a efetiva universalização não ocorrerá sem a ampliação  da rede pública  e  integração dos estabelecimentos privados em torno de  projetos para a melhoria da saúde da população.  
As apostas sobre a direção das articulações entre o público e o privado estão abertas. O que está em jogo não é mercado versus Estado e sim o uso dos recursos públicos para o SUS e planos privados. Nos primórdios da saúde pública essa tensão encontraria meios radicais de resolução. Virchow um dos fundadores da medicina social na Alemanha criticou Bismarck por usar em excesso o orçamento para o exercito. Ofendido o Chanceler da Prússia o desafiou para um duelo. Conta a história que o sanitarista escolheu as armas. Sabendo que seu opositor era um exímio atirador e esgrimista, propôs substituir as espadas por duas salsichas, uma delas contaminada por bactérias.  Não houve a disputa e a saúde publica naquelas plagas se desenvolveu. Aqui, seguimos brigando pelo lugar da saúde pública e destino dos recursos.  O sistema público que propicia bem-estar e elevação geral das condições de vida via intervenção nos determinantes sociais da saúde não é terceirizável.  A regulamentação da EC29, em sua versão original que assegura mais recursos para o SUS, e a vedação do acesso aos cofres e instalações públicas às empresas de planos de saúde podem estimular a progressividade tributária e fiscal bem como gastos sociais mais redistributivos. Em contrapartida, a virulência do rentismo expressa no apoio de organizações privadas às políticas de elevação das taxas de juros gera custos superiores à própria capacidade governamental para aprimorar a qualidade dos gastos, enfrentar déficits e investir na saúde.

*Ligia Bahia
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretora do Conselho Consultivo do Cebes. 
Ligiabahia55@gmail.com
 

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